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domingo, 12 de junho de 2011

Matar a morte?


“Matar a morte” foi o termo usado por uma pessoa querida para descrever a sensação de envolvimento pleno com a leitura do livro: A menina que roubava livros (Markus Zusak). Conversávamos sobre várias coisas e lembro-me de dizer que o desejo de morte era uma constante em meu pensamento, algo tão natural, e é um alento saber que ela está à espreita a todo instante; no entanto, sua tarefa também é um tanto árdua, ela também leva muito serviço para casa, esse “ser das trevas” tem muitas limitações em relação ao seu desempenho.

Quanto a mim, o meu embate eterno é com a velhice. Ela me atormenta a cada gota de tempo que escorre por entre os dedos, não consigo vencê-la sem resmungos, sem esse enfrentamento que faz doer corpo e alma. Todo dia um pouquinho. Um pouquinho mais de dor, uma dor generalizada que não se concentra em nenhum órgão físico, ela se espalha como um manto e toma-me por inteiro. Parece situar-se no perispírito, numa dimensão para fora do meu corpo. Um pouquinho mais de tristeza, de frustração, de amargura, de total ausência de vontade. Dói abrir os olhos pesados da noite insone, atormentada pelo medo e a solidão da existência, pisar no chão ao acordar pela manhã. Dói sentir frio, dói a fragilidade diante da compulsão pela comida -  a eterna vontade de comer, a insaciedade - o pavor do próprio corpo no seu gigantismo, a enormidade feia.

A velhice faz tudo doer, um tudo que se alonga, numa dor perene, um caminhar em trilhos lentos de um trem cujo destino não tem mais importância. O medo assoma a cada movimento brusco ou diferente. O diferente dói, amedronta, apavora. Tudo parece um poço sem fim de fracassos, de incertezas, de projetos largados no caminho por pura falta de  estímulo, vontade. Ausência de vida numa vida prolongada, eternamente longa.

Agora não se tem mais de criar o filho, ele se criou e o seu distanciamento também dói. Os medos se concentram naquilo que ele não pode ser, naquilo que não consegui convencê-lo a ser; os medos se misturam com a luz dos sóis que ele ainda verá nascer sem mim para dizer “não vá, não deves ir”. E eu sei que ele irá. Irá porque eu o perdi quando não soube dizer direito o que era certo e errado porque também eu não sabia direito. Eu o perdi para tudo que mais me causou medo na sua infância, para tudo que eu mais abominava quando o olhava pequeno em meu colo,  e suplicava nas minhas orações, implorando ao sagrado que o protegesse, que não o deixasse chegar perto do mal.

Não tenho mais que prestar exame de seleção, não quero mais prestar exames de seleção e passar atestado de mediocridade; não quero mais dirigir e o carro novo me apavora: eu poderia? São tantos botões e a minha cor marrom que não combina.

Não tenho mais que ir a casamentos e batizados, restam-me visitas a hospitais e cemitérios. Até os velórios hoje são divertidos, as pessoas riem sem pressa, como se o tempo as pertencesse, poucas pessoas têm rugas, são donas do tempo e ele passou só para mim; não, ainda não passou, insiste em caminhar com vagar, passos lentos e pesados e meus olhos secos olham cheios de inveja para o defunto estendido. O meu caminho foi cheio de defuntos e todas as minhas lutas foram vãs.  

Não tenho mais que cuidar da mãe doente, e não tenho mais colo de mãe, agora eu sou a mãe que fracassou. Talvez eu nunca tenha sido mãe.

Sobraram-me as noites velhas, de um frio  pavoroso, sobraram-me noites sem estrelas, de caminhos inseguros, de um não dormir com medo de não ouvir o relógio despertar. Como se isso tivesse alguma importância.

A vida foi uma caminhada cheia de sapos que não viraram príncipes, troféus que não foram conquistados, espaços que não foram preenchidos, uma vida de dor. Hoje eu chorei mais do que devia, chorei por todas as mães que não conseguiram ser mães por inteiro, chorei por mim.

A cidade grande continua apertando meu pescoço, seu frenesi me fazendo encolher dentro da minha casca fétida. A alegria do outro me incomoda, a felicidade cara do mundo me enfurece pela sua deslealdade: por que a uns e não a todos? Sinto falta do Kesley Kisley e sofro por pensar que não o verei mais. Quem o teria levado? Ele precisava de mim e eu gostava dele, por que o levaram?

Domingos me enojam pelo rol infinito de obrigações, pela lista que não termina: colocar roupa na maquina, arrumar as gavetas, preparar as aulas, ler os periódicos, o jornal, visitar as redes sociais, esperar o telefone tocar. Ele tocou? Não, o telefone nunca toca. Domingo leva fatalmente a uma exposição que atormenta: tenho que ver o mundo em seu arco-íris reluzente: pessoas felizes, falantes, agitadas, e eu envolta, falando, cuspindo, babando, o medo me corroendo por dentro. Acabaram os comprimidos, não quero mais tarjas pretas, não quero mais fazer de conta que não dói, porque dói, dói muito.

 No caminho de volta eu pensei  nas minhas sensações ao ler “A peste” (Albert Camus) e Ensaio sobre a cegueira (José Saramago): as semelhanças trágicas de seus personagens e a minha presunçosa identificação com os desgraçados. Estou cansada de um tempo parado e frio, de um quarto assombrado feito sarcófago, de uma noite eternamente medonha, à espera de que algo trágico me arranque da letargia e me suspenda desse torpor. Sinto medo enquanto espero o filho que não chega, medo de que ele não chegue mais.

 

Goiânia, 12 de junho de 2011.


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