Existem pessoas iguais a mim, é
lamentável (?), mas existem pessoas iguais a mim. Pessoas que quando me ouvem reagem aos
absurdos com mais absurdos cuspindo raiva e impropérios, vociferando aos quatro
ventos, fazendo com que eu me sinta um
pouco normal, definindo parâmetros. Quando muita cansada recuo, se me resta
ainda um tiquinho só de energia volto à tona com ira renovada. Pouquíssimas vezes refleti sobre isso, hoje
mais detidamente. Talvez porque apenas hoje esteja vivendo o que chamam
carinhosamente de "climatério". A sociedade moderna usa mais
eufemismos do que devia, em ocasiões desnecessárias abusa de gentilezas
camufladas de sabotagens à alma alheia. Na verdade envelheci, esse é o termo
adequado.
Estou rabugenta, intolerante e mais
insuportável, uma vez que nunca tenha sido um exemplo de docilidade. Envelheci
e envelhecer dói. Vai explicar isto para o cirurgião dentista que está cuidando
da parte cirúrgica dos implantes de uns
poucos dentes em minha boca "já prá depois do meio-dia"; o cara fica
bravo, atravessado e falta pouco sugerir que eu arranque as próteses e lhe
devolva. Provavelmente espera que eu caia de joelhos e me desculpe, mas minha
ira está ali, latente, enjaulada, civilizadamente enjaulada, organizando a resposta catedrática e eu saio
soberana, altiva: gentileza gera gentileza. Na verdade saí do consultório cuspindo
fogo, mas em cima do salto.
Que vontade de voltar e segurar seu
colarinho, olhar para sua cara carrancuda e dizer: se você não gosta de plantar
dentes em bocas envelhecidas, que vá operar a Bolsa de Valores em Nova York, vá
ser piloto de Fórmula 1, isso não é problema meu. Mas... Que nada! Sejamos
civilizados e contenhamo-nos. Um pouquinho de Durkheim e sua solidariedade
social. Deixa o cara remoer sua ira
e eu que remoa a minha.
O indivíduo é raivoso, não gosta do que
faz, ou,
talvez goste só um pouquinho, ou, talvez goste só de um pedacinho de tudo o que
faz, ou,
talvez eu tenha entendido tudo errado, o que é mais provável, sei lá; o que
conta é que aquele dentista hoje me fez perceber que, felizmente, existem
pessoas assim, iguais a mim: enraivecidas, bravas, iradas, nem sempre
disponíveis à necessária hipocrisia para a vida em sociedade. Existem pessoas
iguais a mim: humor ácido, dose inadequada de dopamina no organismo, mas
humanos, buscando seu lugar ao sol.
Sorte a minha que pessoas como a K., com
quem trabalho todos os dias, estão por
todo o lado; puro sol e luz, riso e
leveza. Ouvindo-me dizer que aos cinquenta anos não se é bonito ou feio, apenas
se é velho; K. contesta: "Que nada, toda idade tem uma beleza
própria". E o engraçado é que ela diz isso e vai embora, não lhe custa
nada, não tem um preço, não olha para trás, não está argumentando e nem
travando uma batalha, apenas pensa assim.
Suas frases são naturais, nenhuma
construção arquitetônica prévia para impressionar ninguém. Quando estamos ali,
no chão de fábrica - minhas costas ardendo - ela transita com serenidade, fala pouco e
quando o faz é sem exageros. Sua sabedoria de menina e a tranquilidade pouco
comum na juventude me fazem repensar o meu amargor, que tem o peso da minha
estatura física, quase um elefante arrastando "pes de chumbo" . Mas a
presença da K. me dá conforto, não tenho vontade de me esconder dela.
Sorte a minha que existem pessoas como
minha sogra, que aos "setenta e tantos", brava, toda enfezada, ainda
reza e tem tolerância suficiente para me amar e cuidar de mim, para não me
deixar sem mãe, para não deixar meu filho sem avó. Hoje eu acordei assim, muito
nostálgica, muito down. Saudades do
Ademir, do Negrinho, do Dir, lembranças tristes, aposentadoria, corticoide, 80kg na balança.
Algo mais? Ah, fui ao cirurgião dentista.
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